Seus direitos, cara a cara com a montadora

Quando não há solução amigável, o jeito é recorrer à Justiça

texto: Por Thiago Lasco/agência estado

Quem compra um zero-quilômetro leva para casa, além do cheirinho de carro novo, a promessa de tranquilidade. Oficina, só na revisão – ao menos nos primeiros anos. Mas nem sempre é assim. Há casos de veículos com defeitos que a fábrica não reconhece ou não consegue resolver, e o consumidor é obrigado a buscar seus direitos na Justiça.
Foi assim com Ricardo Rayes, que comprou um Discovery Sport zero-km em julho de 2015. O engenheiro diz que o utilitário-esportivo tem ruídos na suspensão dianteira, rangidos no banco traseiro e estalos na coluna, e a Land Rover deu solução satisfatória apenas para os dois primeiros defeitos.
“Eles queriam remover o para-brisa, desmontar a cabine e refazer as soldas das colunas. Não aceitei, pois havia pago por um modelo zero-km e o carro não ficaria como novo”, diz.
Após semanas de negociação, a empresa ofereceu um Evoque, carro mais barato, mediante o pagamento de mais R$ 30 mil. Rayes entrou com uma ação judicial pedindo o cancelamento da compra e a restituição do valor que pagou. Enquanto o caso tramita na Justiça, ele continua rodando com o Discovery.
Já o caso da socióloga Aladia China envolve um defeito no câmbio de seu EcoSport. Desde que o adquiriu, em dezembro de 2015, ela notou que a transmissão trepidava e o Ford não conseguia vencer as ladeiras do bairro onde ela mora. O problema persistiu mesmo após três visitas à autorizada.
“Disseram que seria necessário trocar o conjunto de embreagem, mas não tinham as peças. Descobri que havia muitos outros clientes com o mesmo problema”, conta Aladia.
Ela diz que ficou surpresa com a resposta negativa da Ford quando perguntou se havia um recall para o defeito. “A única providência da marca foi conceder garantia estendida para a peça Mas eu não queria ter de ficar trocando câmbios do carro por dez anos.”
Depois de outra visita frustrada à autorizada, da qual diz que o Ford voltou ainda pior, Aladia deu um basta. Procurou um advogado, reuniu os registros das intervenções mecânicas feitas no veículo e, em abril de 2017, ajuizou ação contra a montadora e a concessionária, pedindo o cancelamento do negócio e a devolução do carro.
Oito meses depois, as duas empresas foram condenadas a restituir à socióloga o valor pago pelo EcoSport, com atualização monetária, além de pagar uma indenização por dano moral. A Ford recorreu da decisão.

PROVAS
Quando o produto apresenta defeito e o fornecedor não faz um reparo definitivo em até 30 dias, a lei dá três opções ao consumidor. Ele pode exigir a substituição do bem por outro novo, a devolução da quantia que pagou ou, ainda, um desconto no preço, proporcional à depreciação causada pelo problema.
A maioria dos consumidores escolhe pedir o dinheiro de volta – até porque a má experiência com o veículo é um desestímulo a permanecer na marca.
Para que tenha o pedido atendido na Justiça, o dono do carro deve se cercar de provas que demonstrem os defeitos alegados. “Instruímos nossa cliente a fazer registros dos problemas do carro com o celular, em vídeos com data”, conta o advogado Paulo De Mingo, do escritório que representa Aladia. “E juntamos no processo documentos que mostravam que o problema era frequente nos Ford, incluindo reportagens publicadas no Jornal do Carro e queixas de seus leitores.”
Uma perícia poderá averiguar se o veículo tem ou não os problemas. Essa prova técnica pode ser requerida pelo consumidor ou pela montadora.
“Fiz questão de acompanhar a perícia, pois o defeito do carro não era contínuo”, explica De Mingo. “Na primeira volta, não houve nada de anormal e a concessionária já queria encerrar a perícia. Mas insisti para que rodássemos mais um pouco e a trepidação apareceu.”

ESTRATÉGIAS
O consumidor pode usar outras estratégias para fazer valer os seus direitos. O contador Misaki Lira seguiu um caminho pouco comum para se livrar de seu Honda HR-V, cujos problemas na suspensão não foram sanados nem após três trocas do eixo traseiro.
“Se entrasse com uma ação na Justiça comum, eu seria obrigado a desembolsar cerca de R$ 16 mil só de custas judiciais e, em caso de vitória, ainda teria de dar ao advogado 30% do que viesse a receber. Por isso, resolvi construir uma tática diferente”, diz Lira.
Ele elaborou uma espécie de dossiê, após conversar com outros donos de HR-V, mecânicos, advogados e jornalistas especializados. O contador, que mora em Esperantina (PI), usou o material para formular um pedido de distrato contra a Honda – não em uma ação judicial, mas em uma reclamação feita ao Procon de Teresina.
Ao Judiciário, ele requereu apenas uma indenização por danos morais – de R$ 12 mil, valor baixo o suficiente para ser solicitado no Juizado Especial (conhecido como “Tribunal de Pequenas Causas”).
“A primeira audiência no Procon foi infrutífera. Mas meu dossiê mostrou que o defeito atingia vários outros consumidores no Piauí e o órgão determinou o envio da documentação para o setor de causas coletivas”, conta Lira.
Na segunda audiência, a Honda propôs um acordo. A empresa pagou o valor corrigido do veículo, mais R$ 8 mil por danos morais a Lira, que encerrou a reclamação e o processo judicial. “No fundo, a própria Honda sabia que o problema não era só comigo”, diz.
Procuradas pelo JC, Land Rover, Ford e Honda não comentaram os casos mostrados nesta reportagem.
A Anfavea, associação das montadoras, informa que “não comenta o assunto e nem as ações judiciais em questão.”
Segundo a Fenabrave, que reúne as associações de concessionárias do país, “são situações pontuais, em que só as marcas envolvidas podem se manifestar, se desejarem.”

Entregar o carro ou continuar usando?
Nas ações judiciais que têm como objeto um veículo com defeito, uma das questões mais controversas é o que fazer com o carro durante o processo. Em tese, se o consumidor quer receber de volta o valor que pagou, terá de devolver o veículo. Mas o assunto não é tão simples assim.
Em muitos casos, quando o advogado do consumidor notifica a montadora a retirar o carro, ela não aceita o bem de volta. Como não é do interesse da empresa facilitar as coisas, receber o veículo pode ser visto como uma anuência tácita de que o produto tem problemas, o que ela tentará negar o tempo todo.
Continuando a rodar com o carro, o consumidor evita que surjam problemas pela falta de uso e não fica sem transporte durante a discussão na Justiça (muitos dependem da devolução do dinheiro para poder comprar outro carro). Por isso, os advogados têm orientado seus clientes a permanecer com o veículo, mantendo-o em bom estado, sem multas e com documentos em dia.
O problema é que isso abre para a montadora a possibilidade de alegar enriquecimento sem causa pelo consumidor. Vamos supor que o veículo foi comprado por R$ 50 mil em 2015 e só será devolvido três anos depois, no fim do processo. Se o comprador receber os R$ 50 mil atualizados, estará ganhando mais do que entregou, já que o produto devolvido terá sido depreciado pelo uso.
Por isso, é comum a fabricante alegar que o correto é fazer uma restituição apenas parcial do valor pago pelo consumidor, com o abatimento proporcional à desvalorização do carro.
Caberá ao consumidor sustentar que a resolução (cancelamento) de um contrato faz as partes voltarem ao estado em que se encontravam antes de fechar negócio – e, por isso, o valor deve ser devolvido integralmente. Pesar os argumentos dos dois lados é função do juiz.

O caminho das pedras para a ação judicial
1. Prazo para agir: se o consumidor tem um carro defeituoso, o primeiro passo é enviar um pedido por escrito à montadora exigindo que o problema seja solucionado em até 30 dias, como determina a lei. Uma notificação extrajudicial, com aviso de recebimento, evita que a marca alegue que não tinha conhecimento dos fatos.
“Vencido o prazo, recomenda-se que o consumidor parta para o litígio judicial. O prazo para propor ação que verse sobre vício de veículo é de 90 dias, contados da data em que o problema foi verificado”, diz o advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Igor Marchetti.
Se a concessionária diz ter efetuado o conserto, mas o problema voltar, o consumidor não precisa aguardar outros 30 dias. “Se o carro está no mesmo estado, na prática é como se nenhum reparo tivesse sido realizado. Nesse caso, o cliente já pode exigir uma das três alternativas oferecidas pela lei: a troca do carro, a devolução do dinheiro ou o abatimento proporcional”, afirma Marchetti.

2. O custo do advogado: o montante que será gasto com o advogado varia de acordo com o valor do pedido feito contra a montadora e também com o preço de cada profissional. Há três tipos de contratação para esse tipo de serviço. Alguns advogados pedem um valor fixo para defender a causa, independentemente do resultado que será obtido.
Outra modalidade, a mais comum, compreende um valor fixo e outro variável, este pago somente em caso de sucesso – em geral, entre 10 e 20% do que for recebido pelo consumidor no fim do processo. Há ainda profissionais que não cobram nenhum valor fixo e só recebem em caso de êxito. Se o cliente perder a ação, não terá nenhuma despesa. Mas, em caso de vitória, o advogado leva até 30% do valor pago pela montadora.
É importante lembrar que, além dos honorários do advogado, o consumidor também terá de pagar, para dar início ao processo, custas judiciais de 1% do valor da causa.

3. Documentos e ônus da prova: antes de ir à Justiça, o consumidor tem uma importante lição de casa a fazer: reunir provas do defeito do veículo, que serão anexadas à petição inicial do processo. É possível registrar o problema com fotografias ou vídeo, conforme o caso. Deve-se juntar as ordens de serviço da concessionária, que comprovam as tentativas frustradas de reparo, e a notificação à montadora. Também vale a pena checar na imprensa especializada e em fóruns de discussão na internet se o defeito é recorrente. “Descobri um grupo de donos de Discovery Sport na Inglaterra que enfrentam o mesmo problema do meu carro”, conta Ricardo Rayes.
Se o consumidor reunir um conjunto robusto de indícios, capaz de convencer o juiz da verossimilhança (provável verdade) das alegações, ele poderá ser beneficiado com a inversão do ônus da prova. A partir daí, passará a ser da empresa ré o ônus de provar que está certa.
Para o advogado Paulo De Mingo, cuja banca obteve uma vitória em primeira instância contra a Ford, o consumidor não deve confiar na possível inversão do ônus da prova. “Não deixe que a montadora demonstre o ‘não’: demonstre você o ‘sim’”, recomenda.

4. Perícia: uma perícia pode verificar se o carro tem ou não os problemas alegados. A avaliação será feita por um técnico nomeado pelo juiz e pode ser requerida tanto pelo consumidor quanto pela montadora.
Como regra geral, cabe a quem solicitou a prova depositar os honorários do perito. Mesmo se o juiz aplicar a inversão do ônus da prova, isso não significa que o custo da perícia será todo da montadora. Pode ser que o juiz divida a despesa entre as partes, ou mande o consumidor arcar com os custos, se entender que a prova é de seu interesse exclusivo.
O advogado Marcos Montoro sugere uma estratégia para o consumidor que quiser evitar o custo da perícia. “Ele pode apresentar, na inicial, três laudos de oficinas ou profissionais idôneos, que atestem a existência dos problemas alegados. E dizer que essa é a prova. Se a montadora quiser discutir, então ela requer a perícia – e paga por isso sozinha.”

5. Dano moral: o martírio de enfrentar um problema mecânico e não receber uma solução, as idas e vindas na autorizada e os dias sem carro para os compromissos. Tudo isso gera um sofrimento que pode ser entendido como dano moral e passível de indenização. “Se você comprou um carro zero-km, não tem tolerância a problemas”, diz o advogado Raphael Longo. “Mas terá de mostrar ao juiz que o que ocorreu não foi um mero aborrecimento (que não é indenizável).”
A questão mais sensível é o valor a ser pedido como indenização. Esqueça as cifras milionárias comuns nos Estados Unidos, por exemplo. O Judiciário brasileiro tem uma cultura de dano moral de baixo valor. Alguns advogados pedem 50% do preço do carro ou mais – na prática, são comuns sentenças com valores entre R$ 5 mil e R$ 10 mil.
“Não faça pedidos absurdos, mas sim calcados na realidade do que o Tribunal entende ser justo para aquele tipo de situação. O correto é o advogado fazer uma pesquisa de jurisprudência para ver como o TJ e o STJ estão agindo em casos semelhantes”, ensina Marcos Montoro.
Um chute alto demais pode dar ao juiz a impressão de que o consumidor quer ganhar dinheiro com o processo, e não apenas buscar uma reparação. E o tiro pode acabar saindo pela culatra.
“Se o autor pedir R$ 30 mil de dano moral e o juiz der apenas R$ 10 mil, ele foi derrotado em R$ 20 mil e terá de pagar honorários ao advogado da empresa ré sobre esse valor”, adverte Montoro.

6. Acordo: às vezes, é preciso saber a hora de parar. Diz um aforismo jurídico que “mais vale um acordo ruim do que uma demanda boa”. O consumidor deve estar preparado para receber uma proposta da empresa, dentro ou fora da audiência de conciliação.
Via de regra, o valor oferecido será bem menor que o pedido. Se vale a pena ou não, são ponderações que devem ser feitas com o advogado. Qual é a chance de sucesso? A prova técnica é complicada?
“Um acordo envolve sempre abrir mão de algo, não existe acordo em que se ganhe 100%. Se você sabe que seu direito é forte, o defeito do carro realmente propicia uma vitória e seu estômago é forte para esperar por ela, então não aceite a proposta”, diz Raphael Longo.
Às vezes, porém, os aspectos práticos podem falar mais alto. “Se aquele defeito inviabiliza o uso do veículo e a pessoa não pode ficar a pé, pode ser mais vantajoso aceitar um valor menor, comprar logo outro carro e tocar a vida adiante”, pondera o advogado Gabriel Allegretti.