Domínios do cacau – nordeste
Sabores regionais tomam conta do sul da Bahia
É um pouso muito ilustrativo este que o avião faz no aeroporto de Ilhéus – aeroporto Jorge Amado, como não? Os minutos finais do voo mostram com clareza encantadora o que é que este pedaço do sul da Bahia tem: mares de morros a perder de vista, verdes que dá vontade de respirar fundo até encher o pulmão, e que acabam só quando encontram o oceano. Um beijo desavergonhado da Mata Atlântica no mar, beijo com gosto de chocolate, descobre-se com os pés em terra firme.
Aqui é a Costa do Cacau, lugar onde o cultivo do fruto-base do chocolate fez a fortuna de coronéis e forneceu inspiração para Jorge Amado, o filho adotivo ilustre de Ilhéus (ele nasceu em Itabuna), isso lá na metade do século 20. Hoje, conhecer o legado do escritor é um programa indispensável na região.
Costa do Cacau assim, em letras maiúsculas, é uma das subdivisões turísticas que o governo da Bahia criou para enfatizar a personalidade própria de trechos distintos do litoral do Estado. Neste, que vai de Itacaré, mais ao norte, a Canavieira, no limite sul, passando por Ilhéus e Una, a personalidade inclui os pés de cacau plantados em meio à Mata Atlântica. Mas estrelas mesmo são as desejadas praias enfeitadas por coqueirais.
Uma das hospedagens pé na areia é o resort Transamérica Comandatuba. Inaugurado em 1989, ocupa metade de uma ilha. Tours pela região partem do próprio resort, bem como as balsas que fazem a ligação com o continente, só para hóspedes. Além disso, acarajé, dendê, água de coco – tudo o que se espera de férias na Bahia.
PÉS NA TERRA E FRUTOS NO PÉ
Por pouco não desistimos do passeio. A estradinha enlameada pela chuva forte da manhã ameaçava impedir o avanço do carro. E olha que mal faltava 1 quilômetro entre a porteira e o terreiro da Fazenda Bom Jesus, onde éramos esperados pelo Galego, o funcionário que nos receberia para um tour pela produção orgânica de cacau.
A Bom Jesus fica em Una, um dos quatro municípios da Costa do Cacau. O cultivo do fruto começou na região na década de 1930, e os cacaueiros dominaram uma área costeira de cerca de 180 quilômetros. Essa economia chegou ao seu auge na década de 1950, mesma época em que o escritor Jorge Amado publicou o romance Gabriela, Cravo e Canela (1958) e outros livros que retrataram o estilo de vida dos barões do cacau.
Na década de 1980, a praga agrícola conhecida como vassoura-de-bruxa dizimou boa parte dos cacaueiros, a produção entrou em declínio e derrubou o preço das terras. Muitas foram compradas por estrangeiros. Nos últimos anos, a praga vem sendo derrotada e o cacau retoma, pouco a pouco, a importância. Em 2015, a região exportou o fruto pela primeira vez em mais de 20 anos.
Para além da fabricação de chocolate, que continuou a ser feita com cacau importado, os produtores da região vêm se organizando para reforçar o fruto como atrativo turístico. Em julho, durante o 9.º Festival Internacional de Chocolate e Cacau, em Ilhéus, foi anunciada a criação da rota turística Estrada do Chocolate, prevista para começar a funcionar no verão.
Entre sabores. Com o guia Edson Carvalho, cheguei à Fazenda Bom Jesus ainda debaixo de chuva – o normal para o fim de junho. A seca começa agora, em setembro. Galego forneceu galochas, e a visita começou pelo galpão onde as amêndoas são retiradas de dentro do cacau e colocadas para fermentar, antes da secagem. Há dezenas dessas sementes dentro de cada fruto, recobertas por uma polpa carnuda cujo sabor lembra a fruta-do-conde.
A degustação teve mel de cacau (R$ 25 a garrafa de 500 ml) e um tipo de suco feito com a fruta, além de banana e coco secos. Tudo colhido na fazenda de produção orgânica. A Bom Jesus é uma das 33 propriedades que integram a Cabruca, a Cooperativa dos Produtores Orgânicos do Sul da Bahia. Cabruca é o nome da técnica de cultivo que consiste em plantar em meio à Mata Atlântica, sem desmatar.
Neste ponto da conversa já estávamos caminhando pela propriedade, passando pelas plantações de pimenta e baunilha que se intercalam aos cacaueiros e rindo da possibilidade de escorregar na terra úmida.
Galego parou para mostrar como se faz um enxerto, o processo de implantar um ramo de cacau mais forte geneticamente em outro cacaueiro mais vulnerável. Foi principalmente esta técnica que derrotou a vassoura-de-bruxa – e é por causa dela que são avistados frutos de cacau de cores variadas, amarelos, vermelhos e roxos, brotando no mesmo pé.
À medida que nos embrenhamos em fila indiana pela Mata Atlântica, o ar foi ficando mais fresco e aromático. Até que paramos como quem para diante de uma divindade. Com estimados 30 a 40 metros de altura e 250 anos de idade, uma majestosa gameleira marca o fim da trilha.
A árvore é tão bonita, tão gigantesca e imponente que emociona. Escalei algumas raízes para chegar mais perto, sentir a textura da casca, o cheiro da chuva. Por pouco não desisti de sair dali.
NA TERRA DE JORGE AMADO
E GABRIELA
Mais do que sua criação mais famosa, a Gabriela da ficção, é o criador Jorge Amado o personagem-ícone de Ilhéus. A maior cidade do sul da Bahia e oitava no Estado – tem cerca de 170 mil habitantes – vive turisticamente das memórias do escritor, que a imortalizou em livros como Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e Gabriela, Cravo e Canela, e, de certa forma, moldou a cultura baiana no imaginário brasileiro.
Em uma caminhada curta pelo centro histórico da cidade estão os principais pontos ligados ao escritor. A Casa de Cultura Jorge Amado ocupa um sobrado de fachada amarela onde ele passou parte da infância e a adolescência. É considerada o local onde Jorge Amado começou sua carreira literária. No pequeno museu que ocupa algumas das salas há roupas e fotografias que contam sua vida e obra – a atriz Sonia Braga, que interpretou Gabriela no filme de 1983, está em algumas das imagens, claro.
A sala mais interessante guarda figuras de entidades do candomblé, fé de matriz africana que o escritor estudou e usou intensamente em seus livros. Abre das 9h às 12h, e das 14h às 18h, de segunda à sexta. Aos sábados, das 9h às 13h. Fecha aos domingos: bit.ly/ccjorgeamado.
Há uma estátua de Jorge Amado de pé diante da casa, esperando pelas selfies. Outra forma de garantir o tete-a-tete com o escritor é seguir para o Bar Vesúvio logo ali, na ponta do calçadão onde fica a Casa de Cultura. O Bar Vesúvio, que existe desde a década de 1920, é o restaurante onde Gabriela é contratada como cozinheira por Nacib, o proprietário. Infelizmente, neste momento, a foto ao lado do escritor sentado em uma mesa na calçada é tudo o que se pode ter do bar, que está fechado para reforma e cercado de tapumes, com previsão incerta de reabertura para o fim do ano.
De costas para o Bar Vesúvio e de frente para a orla do Rio Cachoeira está o cabaré Bataclan, outro dos lugares que Jorge e Gabriela tornaram famosos. Funciona no almoço em sistema de bufê e tem, no salão principal, uma reprodução do antigo palco, além de outros objetos de decoração alusivos à sua função de bordel. No fundo há um pequeno museu em memória da cafetina Maria Machadão e de suas ‘quengas’. Quem não almoça por ali paga R$ 5 pela visita.
Pedras azuis. Ainda no centro histórico, procure pela Rua Antônio Lavigne de Lemos, via curtinha que vai até a Catedral de São Sebastião. A rua é curiosa pelo seu calçamento de pedras retangulares e azuladas, perfeitamente assentadas. Sabe-se que o calçamento é da primeira década dos anos 1900, que as pedras são de origem inglesa e foram trazidas da Europa, provavelmente em um navio que vinha buscar cacau. O resto é especulação: teriam sido encomendadas por um certo coronel Misael Tavares, cujo palacete também fica na via, para asfaltar seu caminho até a igreja ou o de sua filha, por ocasião do casamento da moça.
Para o turista, o mais interessante é que a rua vem sendo recuperada e tem algumas boas lojas e ateliês de arte e decoração em casinhas antigas pintadas de coloridão. Ainda no tema compras, o centro está cheio de lojas de chocolate local, que também pode ser comprado no Mercado de Artesanato (Praça Eustáquio Bastos, 2). O pacote de 1 quilo de cacau em pó custa R$ 8.
Água à vista. Para admirar Ilhéus do alto – e a vista é realmente bonita – suba ao Convento de Nossa Senhora da Piedade. Não é preciso entrar. O mirante, que dá vista para os telhados da cidade e o mar, fica diante do portão. Mas ao pagar os R$ 2 que dão direito a visitar a capela com pinturas no forro, o turista é guiado por jovens estudantes do Curso Técnico de Turismo, o que remete à origem do convento, que nasceu entre 1916 e 1921 para suprir a falta de escolas para os jovens da região.
A praia mais frequentada da área urbana é a dos Milionários, pouco ao sul. As águas são ligeiramente turvas – em toda a orla oceânica do centro de Ilhéus é assim. Há muitas barracas – testei o aperitivo catado de siri (R$ 16) em uma mesa diante do mar da Cabana Gabriela. Com cerveja gelada, para combinar com a tarde gostosa de calor na Bahia.
da árvore ao chocolate
Consulte a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) para informações sobre fazendas de cacau abertas à visitação: (73) 3214-3000.
Cepec: O Centro de Pesquisa do Cacau integra a Ceplac e oferece um tour guiado detalhado sobre cultivo de cacau e produção do chocolate. Dura 1h30 e é gratuito – agende se o grupo for maior do que dez pessoas. Atenção aos horários: de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 10h30 e das 13h30 às 15h30. Atrasos não são tolerados: (73) 3214-3000.
Fazenda Yrerê: Na Rodovia Ilhéus-Itabuna, apresenta o processo produtivo, tem degustação e loja. Abre aos fins de semana; R$ 30 por pessoa: (73) 3656-5054.
Fazenda Provisão: Tem tour, trilhas e hospedagem. Passeios ocorrem de segunda a sábado; agende: fazendaprovisao.com.br. Fica na Rodovia Ilhéus-Uruçuca.