Domínios do cacau – nordeste

Sabores regionais tomam conta do sul da Bahia

texto: Por Mônica Nobrega/agência estado | fotos: divulgação
texto: Por Mônica Nobrega/agência estado | fotos: divulgação

É um pouso muito ilustrativo este que o avião faz no aeroporto de Ilhéus – aeroporto Jorge Amado, como não? Os minutos finais do voo mostram com clareza encantadora o que é que este pedaço do sul da Bahia tem: mares de morros a perder de vista, verdes que dá vontade de respirar fundo até encher o pulmão, e que acabam só quando encontram o oceano. Um beijo desavergonhado da Mata Atlântica no mar, beijo com gosto de chocolate, descobre-se com os pés em terra firme.
Aqui é a Costa do Cacau, lugar onde o cultivo do fruto-base do chocolate fez a fortuna de coronéis e forneceu inspiração para Jorge Amado, o filho adotivo ilustre de Ilhéus (ele nasceu em Itabuna), isso lá na metade do século 20. Hoje, conhecer o legado do escritor é um programa indispensável na região.
Costa do Cacau assim, em letras maiúsculas, é uma das subdivisões turísticas que o governo da Bahia criou para enfatizar a personalidade própria de trechos distintos do litoral do Estado. Neste, que vai de Itacaré, mais ao norte, a Canavieira, no limite sul, passando por Ilhéus e Una, a personalidade inclui os pés de cacau plantados em meio à Mata Atlântica. Mas estrelas mesmo são as desejadas praias enfeitadas por coqueirais.
Uma das hospedagens pé na areia é o resort Transamérica Comandatuba. Inaugurado em 1989, ocupa metade de uma ilha. Tours pela região partem do próprio resort, bem como as balsas que fazem a ligação com o continente, só para hóspedes. Além disso, acarajé, dendê, água de coco – tudo o que se espera de férias na Bahia.

Em 1930, os cacaueiros dominaram uma área costeira de cerca de 180 quilômetros
Em 1930, os cacaueiros dominaram uma área costeira de cerca de 180 quilômetros

PÉS NA TERRA E FRUTOS NO PÉ
Por pouco não desistimos do passeio. A estradinha enlameada pela chuva forte da manhã ameaçava impedir o avanço do carro. E olha que mal faltava 1 quilômetro entre a porteira e o terreiro da Fazenda Bom Jesus, onde éramos esperados pelo Galego, o funcionário que nos receberia para um tour pela produção orgânica de cacau.
A Bom Jesus fica em Una, um dos quatro municípios da Costa do Cacau. O cultivo do fruto começou na região na década de 1930, e os cacaueiros dominaram uma área costeira de cerca de 180 quilômetros. Essa economia chegou ao seu auge na década de 1950, mesma época em que o escritor Jorge Amado publicou o romance Gabriela, Cravo e Canela (1958) e outros livros que retrataram o estilo de vida dos barões do cacau.
Na década de 1980, a praga agrícola conhecida como vassoura-de-bruxa dizimou boa parte dos cacaueiros, a produção entrou em declínio e derrubou o preço das terras. Muitas foram compradas por estrangeiros. Nos últimos anos, a praga vem sendo derrotada e o cacau retoma, pouco a pouco, a importância. Em 2015, a região exportou o fruto pela primeira vez em mais de 20 anos.
Para além da fabricação de chocolate, que continuou a ser feita com cacau importado, os produtores da região vêm se organizando para reforçar o fruto como atrativo turístico. Em julho, durante o 9.º Festival Internacional de Chocolate e Cacau, em Ilhéus, foi anunciada a criação da rota turística Estrada do Chocolate, prevista para começar a funcionar no verão.
Entre sabores. Com o guia Edson Carvalho, cheguei à Fazenda Bom Jesus ainda debaixo de chuva – o normal para o fim de junho. A seca começa agora, em setembro. Galego forneceu galochas, e a visita começou pelo galpão onde as amêndoas são retiradas de dentro do cacau e colocadas para fermentar, antes da secagem. Há dezenas dessas sementes dentro de cada fruto, recobertas por uma polpa carnuda cujo sabor lembra a fruta-do-conde.
A degustação teve mel de cacau (R$ 25 a garrafa de 500 ml) e um tipo de suco feito com a fruta, além de banana e coco secos. Tudo colhido na fazenda de produção orgânica. A Bom Jesus é uma das 33 propriedades que integram a Cabruca, a Cooperativa dos Produtores Orgânicos do Sul da Bahia. Cabruca é o nome da técnica de cultivo que consiste em plantar em meio à Mata Atlântica, sem desmatar.
Neste ponto da conversa já estávamos caminhando pela propriedade, passando pelas plantações de pimenta e baunilha que se intercalam aos cacaueiros e rindo da possibilidade de escorregar na terra úmida.
Galego parou para mostrar como se faz um enxerto, o processo de implantar um ramo de cacau mais forte geneticamente em outro cacaueiro mais vulnerável. Foi principalmente esta técnica que derrotou a vassoura-de-bruxa – e é por causa dela que são avistados frutos de cacau de cores variadas, amarelos, vermelhos e roxos, brotando no mesmo pé.
À medida que nos embrenhamos em fila indiana pela Mata Atlântica, o ar foi ficando mais fresco e aromático. Até que paramos como quem para diante de uma divindade. Com estimados 30 a 40 metros de altura e 250 anos de idade, uma majestosa gameleira marca o fim da trilha.
A árvore é tão bonita, tão gigantesca e imponente que emociona. Escalei algumas raízes para chegar mais perto, sentir a textura da casca, o cheiro da chuva. Por pouco não desisti de sair dali.

No centro histórico da cidade estão os principais pontos ligados ao escritor Jorge Amado
No centro histórico da cidade estão os principais pontos ligados ao escritor Jorge Amado

NA TERRA DE JORGE AMADO
E GABRIELA
Mais do que sua criação mais famosa, a Gabriela da ficção, é o criador Jorge Amado o personagem-ícone de Ilhéus. A maior cidade do sul da Bahia e oitava no Estado – tem cerca de 170 mil habitantes – vive turisticamente das memórias do escritor, que a imortalizou em livros como Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e Gabriela, Cravo e Canela, e, de certa forma, moldou a cultura baiana no imaginário brasileiro.
Em uma caminhada curta pelo centro histórico da cidade estão os principais pontos ligados ao escritor. A Casa de Cultura Jorge Amado ocupa um sobrado de fachada amarela onde ele passou parte da infância e a adolescência. É considerada o local onde Jorge Amado começou sua carreira literária. No pequeno museu que ocupa algumas das salas há roupas e fotografias que contam sua vida e obra – a atriz Sonia Braga, que interpretou Gabriela no filme de 1983, está em algumas das imagens, claro.
A sala mais interessante guarda figuras de entidades do candomblé, fé de matriz africana que o escritor estudou e usou intensamente em seus livros. Abre das 9h às 12h, e das 14h às 18h, de segunda à sexta. Aos sábados, das 9h às 13h. Fecha aos domingos: bit.ly/ccjorgeamado.
Há uma estátua de Jorge Amado de pé diante da casa, esperando pelas selfies. Outra forma de garantir o tete-a-tete com o escritor é seguir para o Bar Vesúvio logo ali, na ponta do calçadão onde fica a Casa de Cultura. O Bar Vesúvio, que existe desde a década de 1920, é o restaurante onde Gabriela é contratada como cozinheira por Nacib, o proprietário. Infelizmente, neste momento, a foto ao lado do escritor sentado em uma mesa na calçada é tudo o que se pode ter do bar, que está fechado para reforma e cercado de tapumes, com previsão incerta de reabertura para o fim do ano.
De costas para o Bar Vesúvio e de frente para a orla do Rio Cachoeira está o cabaré Bataclan, outro dos lugares que Jorge e Gabriela tornaram famosos. Funciona no almoço em sistema de bufê e tem, no salão principal, uma reprodução do antigo palco, além de outros objetos de decoração alusivos à sua função de bordel. No fundo há um pequeno museu em memória da cafetina Maria Machadão e de suas ‘quengas’. Quem não almoça por ali paga R$ 5 pela visita.
Pedras azuis. Ainda no centro histórico, procure pela Rua Antônio Lavigne de Lemos, via curtinha que vai até a Catedral de São Sebastião. A rua é curiosa pelo seu calçamento de pedras retangulares e azuladas, perfeitamente assentadas. Sabe-se que o calçamento é da primeira década dos anos 1900, que as pedras são de origem inglesa e foram trazidas da Europa, provavelmente em um navio que vinha buscar cacau. O resto é especulação: teriam sido encomendadas por um certo coronel Misael Tavares, cujo palacete também fica na via, para asfaltar seu caminho até a igreja ou o de sua filha, por ocasião do casamento da moça.
Para o turista, o mais interessante é que a rua vem sendo recuperada e tem algumas boas lojas e ateliês de arte e decoração em casinhas antigas pintadas de coloridão. Ainda no tema compras, o centro está cheio de lojas de chocolate local, que também pode ser comprado no Mercado de Artesanato (Praça Eustáquio Bastos, 2). O pacote de 1 quilo de cacau em pó custa R$ 8.
Água à vista. Para admirar Ilhéus do alto – e a vista é realmente bonita – suba ao Convento de Nossa Senhora da Piedade. Não é preciso entrar. O mirante, que dá vista para os telhados da cidade e o mar, fica diante do portão. Mas ao pagar os R$ 2 que dão direito a visitar a capela com pinturas no forro, o turista é guiado por jovens estudantes do Curso Técnico de Turismo, o que remete à origem do convento, que nasceu entre 1916 e 1921 para suprir a falta de escolas para os jovens da região.
A praia mais frequentada da área urbana é a dos Milionários, pouco ao sul. As águas são ligeiramente turvas – em toda a orla oceânica do centro de Ilhéus é assim. Há muitas barracas – testei o aperitivo catado de siri (R$ 16) em uma mesa diante do mar da Cabana Gabriela. Com cerveja gelada, para combinar com a tarde gostosa de calor na Bahia.

da árvore ao chocolate
Consulte a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) para informações sobre fazendas de cacau abertas à visitação: (73) 3214-3000.
Cepec: O Centro de Pesquisa do Cacau integra a Ceplac e oferece um tour guiado detalhado sobre cultivo de cacau e produção do chocolate. Dura 1h30 e é gratuito – agende se o grupo for maior do que dez pessoas. Atenção aos horários: de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 10h30 e das 13h30 às 15h30. Atrasos não são tolerados: (73) 3214-3000.
Fazenda Yrerê: Na Rodovia Ilhéus-Itabuna, apresenta o processo produtivo, tem degustação e loja. Abre aos fins de semana; R$ 30 por pessoa: (73) 3656-5054.
Fazenda Provisão: Tem tour, trilhas e hospedagem. Passeios ocorrem de segunda a sábado; agende: fazendaprovisao.com.br. Fica na Rodovia Ilhéus-Uruçuca.