De alto a baixo Andorra

País é um dos menores do mundo e digno de uma visita

26---Andorra

Ojipão encarou com indiferença o fim do asfalto e, como se não fosse nada, embicou para o alto, as quatro rodas tracionadas mais que acostumadas ao trajeto. Em segundos surgia uma curva em forma de cotovelo, apenas a primeira da ascensão em zigue-zague por um paredão íngreme riscado pela estradinha de terra e pedra. Do interior sacolejante do carro, a escuridão deixava entrever o precipício ora à esquerda, ora à direita, em um percurso algo assustador. Tinha necessidade daquilo tudo só para visitar uma vinícola, ainda por cima à noite?
O caso é que a pergunta não faz lá muito sentido em Andorra, um minipaís entre a França e a Espanha, incrustado nos paredões dos Pireneus. Espremido, tanto quanto espremida vive a gente dali, disputando com os rios o estreito espaço nos fundos dos vales e, à falta de opção no plano, escalando montanhas. Há bairros inteiros equilibrados na vertical.
Não que falte espaço no território de 468 quilômetros quadrados habitados por 85.458 almas, a população de um Itaim Bibi esparramada pelo território de uma Porto Alegre inteira. Mas sobra inclinação, e terra é algo que não se desperdiça, nem na horizontal, nem na vertical; de modo que a Borda Sabaté (bordasabate.com) foi instalar seus vinhedos orgânicos, sua fabriqueta de 3 mil a 5 mil garrafas ao ano de vinhos biodinâmicos e seu restaurante a uma altitude de 1.100 a 1.200 metros.
A arrepiante viagem em 4×4 é a parte ‘com emoção’ da visita turística, que continua pela planta industrial com meia dúzia de tonéis grandes, a sala de barris e a de degustação, e chega ao restaurante Le Domaine, caso se tenha optado pelo pacote com refeição (sem ela, desde US$ 20 por pessoa o tour, com reserva no 00-376-814-900). Naquela noite, foi servida uma parrilla de linguiça, ave e carne de coelho. Os anfitriões pelo jeito julgaram que o cardápio harmonizava melhor com o tempranillo Edulis 2011, da região espanhola de La Rioja, do que com o branco da casa, o riesling Escol, e o tinto, o corte de cornalin, merlot e syrah Torb, ambos sob assinatura do bem cotado enólogo francês Alain Graillot e vendidos a 40 a garrafa.
Lá do alto dava para ver as luzes da cidade no fundão e das casas empoleiradas na montanha da frente, como se estivéssemos no camarote, sensação que se repete por toda Andorra: em cima ou embaixo, a vista é sempre a melhor.
O que não necessariamente se converte, vale avisar, em fotos deslumbrantes. A luz do dia cai cedo, bloqueada pelos paredões onipresentes, o que deixa tudo o que não está coberto de neve com um tom marrom-acinzentado pálido. A impressão é intensificada pelas pedras das quais são feitas as casas do centrinho histórico da capital, Andorra la Vella, e dos vilarejos do interior.
Rasgados por riachos e remendados por pontezinhas de contos de fadas, os vilarejos são ponto de embarque nos teleféricos que levam às pistas de esqui no alto da montanha – e esquiar é o principal motivo pelo qual se visita Andorra.
Passa catalão, passa francês. De tão compacto, Andorra tem vocação para lugar de passagem. Dos 8 milhões de turistas que recebe a cada ano, apenas 2,2 milhões pernoitam, e 80% são espanhóis e franceses. Com a prima-irmã Barcelona a 200 quilômetros, o país tem em comum o idioma e a ancestralidade catalã, e toma emprestado o aeroporto internacional, o mais próximo para quem vai de fora do continente europeu, caso dos brasileiros. Toulouse é a grande cidade francesa por perto: está 185 quilômetros ao norte.
Desde que a União Europeia em crise começou a pressionar Andorra para flexibilizar suas leis de sigilo bancário e deixar de ser um paraíso fiscal, há cerca de meia década, o status de free shop também entrou em declínio. A ausência de impostos nacionais em perfumes, cigarros e bebidas já não representa tanta economia – paga-se nas lojas da capital o mesmo que nos aeroportos de Barcelona e Paris. São poucas as grifes, abrigadas em multimarcas de segunda linha.
Já quem busca roupa e equipamento para esportes de inverno e ao ar livre está feito. A variedade faz brilhar os olhos. Afinal, rodeados de tanta montanha e com 90% de seu território coberto de florestas, correr, pedalar, esquiar e escalar é algo que os andorranos sabem fazer.

Praças charmosas fazem parte do layout da pequena cidade
Praças charmosas fazem parte do layout da pequena cidade

Hotel Plaza
A hotelaria de Andorra se caracteriza por estabelecimentos locais – não há bandeiras chiques de redes internacionais. O Hotel Plaza, onde passei as três noites, faz parte de uma rede andorrana de quatro estabelecimentos. Apesar de se definir como de luxo, não chega a tanto: está mais para um quatro-estrelas correto, com decoração sóbria de madeira escura e móveis volumosos. Tem a vantagem de ter sido reformado em 2009 e, por isso, os quartos estão novos – e têm um bom tamanho para quem detesta acomodações mínimas.
O café da manhã é o ponto alto da gastronomia do hotel, de inspiração muito catalã: no bufê foi servido o melhor jamón ibérico que comi em Andorra, além de boa variedade de pães frescos e frutas. Em um dos almoços, a merluza com alho torrado, verduras e muito azeite foi uma escolha acertada.
Os hóspedes têm perfil misto. Há turistas a passeio, identificáveis nos gostosos sofás do lobby, onde o Wi-Fi funciona melhor que nos quartos, e executivos, que encontrei na pequena academia do spa (uma esteira, uma bicicleta ergométrica) Diária para dois: desde 112, sem café da manhã, e 148, com café: plazandorra.com.

sispony
Era uma mesa multinacional aquela. No restaurante Molí dels Fanals, a pessoa à minha esquerda comia cordeiro na brasa, enquanto a da direita pedira magret de pato. Meu prato tinha bacalhau com mel, pinole e cebola confitada; lá na ponta, alguém era apresentado ao trinxat, um bolo de batatas com porco. Uma porção inesquecível de alcachofras em prancha de ferro ocupava o centro da mesa. E tudo isso depois de um farto couvert geral com jamón ibérico e pan tumaca, o pão com tomate tradicional das entradinhas catalãs.
Este tipo de abundância com sotaque misto entre França, Espanha e a própria cozinha de montanha local define o jeito de comer em Andorra. Por lá, chamam bordas aos restaurantes tradicionais, que ficam em antigos celeiros ou estábulos, onde se cozinham sem frescura e com fartura. O Molí dels Fanals é uma borda no povoado de Sispony, um desses que se distribuem no plano vertical de uma montanha, a 10 minutos de Andorra la Vella. A refeição para dois, sem bebidas, custa cerca de 100; molidelsfanals.com.

A estrada com muita vegetação até Andorra já é uma atração
A estrada com muita vegetação até Andorra já é uma atração

menu-degustação
Com conceito diverso – sai a comida caseira, entram as minúcias do menu-degustação assinado – o Vodka Bar ofereceu outra experiência gastronômica memorável. O chalé de pedras e madeira para até 30 pessoas fica no resort de neve Grandvalira, no setor Grau Roig. A ele se chega de trenó, esqui ou raquetes de caminhada, acessórios que são trocados por pantufas coloridas oferecidas na entrada. Funciona das 13 às 17 horas para almoço e, no jantar, com reserva.
Depois de alguns clichês do estilo – ingredientes frescos, locais, orgânicos, menu sazonal – e de ligeira explicação sobre uma tal ‘comida ecológica’, o chef Ismael Prados, que já apresentou programa na TV espanhola, mostrou que não estava para brincadeiras na sequência de entradas. Veio ostra com vodca; salmão defumado; e foie gras com pedacinhos de pato e marmelo assado, que continuei beliscando com pão da casa torradinho até depois de me tirarem a sobremesa da frente.
Entre uns e outros pratos, o cozido de feijões brancos com pedaços de bacalhau e mollejas foi regado com manteiga líquida; a carne de perna de vitela veio desmanchando; a sequência de queijos teve três variedades locais, feitas de leites de cabra e ovelha; e a sobremesa apresentou mais um ingrediente nativo, o Nectum, um xarope de pinhas despejado sobre o doce de peras – que, aliás, é vendido na cidade e é boa opção de presente.