O caminho de cada um – vida de peregrino

O caminho de Santiago de Compostela é uma experiência única

Foto: divulgação
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Desaprender a seguir conchas e setas amarelas, destreinar os olhos. Aos pés calejados, desensinar a planar sobre estradas e caminhos de terra, sobre ruas de pedra, calçadas milenares. Fazer de um cajado, outrora fiel companheiro, um mero pedaço de madeira.
Existe uma lacuna na tentativa de explicar o vazio que é chegar a Santiago de Compostela após caminhar por mais de 30 dias. Não é felicidade nem tristeza, quase não é real. O peregrino que conclui sua jornada se torna mais um órfão do Caminho de Santiago.
O trajeto por onde tantos passaram em centenas de anos agora também me pertencia. Os motivos, para boa parte deles, tinham a ver com fé ou crença no poder redentor dos supostos restos mortais do apóstolo Tiago, descobertos no século 9 e que hoje repousam na Catedral de Santiago de Compostela. Cada passo ao longo dos quase 800 quilômetros percorridos entre setembro e outubro deste ano, desde Saint Jean Pied de Port, na França, e cada aprendizado edificaram esta jornada.
Bem como a força das hordas de peregrinos que para lá rumaram entre os séculos 12 e 17 e trouxeram a essência, a legitimidade do Caminho de Santiago. Acompanhados de todo legado, fé e misticismo que cercam o Caminho Francês, como é chamado esse trecho, eu e o fotógrafo e videomaker Filipe Araújo nunca estivemos sozinhos.
Cabe ressaltar que, embora todos rumem à Catedral de Santiago, cada um faz seu próprio Caminho. Desconstruir-se ao longo de trinta e poucos dias para remontar-se ao longo do porvir. Uma reengenharia de vida que não segue regras e lógicas. Se a trilha é praticamente uma só, as histórias, condições, expectativas e entregas de cada peregrino são distintas. Ainda que estejamos todos a nos abraçar diante daquela catedral, o resultado não é o mesmo para cada um. Passa a fazer sentido a contraditória ideia de que o caminho começa em Santiago.
Colocar-se em marcha continuamente com tempo dedicado a isso apenas, e nada mais. Intervalo raro e estranho na vida, leva tempo a se acostumar com o status de peregrino – e a legitimar-se como tal perante si próprio. Estar algo inédito em um lugar novo cuja paisagem se transforma a cada instante. Parece muito o tempo empenhado, e muita a distância a percorrer, mas, na prática, é pouco.
São em média 25 quilômetros diários de caminhada, partilhando a comida e interagindo com pessoas. Horas seguidas exposto à verdade da natureza, do vento, do sol, da chuva e do frio. A cada noite, o sono é em uma cama, evidenciando o pouco valor do ter.

CARGA
Nas mochilas, peregrinos trazem o que podem ou não suportar. Carregados de simbolismos, os desapegos materiais têm duplo sentido: desfazer-se de algo que lhe pesa, mas que pode ajudar o outro. Idealistas e utópicos perceberão no Caminho um quê de experiência socialista bem-sucedida, em que a ausência de oferta de privilégios e luxos nivela os peregrinos por meio de necessidades básicas: comer, dormir, tomar banho.
Embora de cantos variados do mundo, cada peregrino tem como estopim para a empreitada motivos que se assemelham. Das perdas, de amor, de emprego ou de um ente querido. Das buscas, de sentido, de encontro consigo, de respostas complexas. Diz um provérbio do Caminho que, em vez de respostas, volta-se para casa com mais
perguntas.
Eis um processo de superação e introspecção em que tudo aflora. O ritmo de cada peregrino, sua passada e velocidade de percepção, têm a exclusividade de uma impressão digital. Cada um tem o seu e não se espante se houver dissonância com um companheiro de caminhada. Eu e Filipe Araújo descobrimos compassos diferentes, andamos em toadas distintas e tivemos bons encontros e reencontros, ao sabor do Caminho.
Se a história, os valores e a bagagem de cada pessoa a fazem moldar o mundo à sua maneira, com o trajeto não seria diferente. Singulares, os significados que cada peregrino atribui ao percurso se harmonizam à vivência, aos encontros e esforços de cada um. Peregrinar é sobre se conhecer, não se penitenciar. E um tanto distinto de turistas, como sempre estive acostumado. É um outro estar.
Já quase no fim, me bate uma vontade estranha. De recomendar a você que pare de ler este texto e simplesmente vá. Munir-se de informações, história e relatos de outros peregrinos é ótimo, mas pode ser um dos ingredientes perversos do despertar da expectativa. A jornada sempre será diferente. Imagine, leia, escute. Apenas para descobrir que não será como você pensava

Desafios
BOLHAS: Para evitá-las, passe uma camada de vaselina no pé, especialmente nos calcanhares e entre os dedos. Se alguma aparecer, fure com agulha esterilizada e lave diariamente com água oxigenada e iodo. O Compeed, adesivo de silicone que protege a região afetada, não foi eficiente.
DORES MUSCULARES: Muita massagem com creme ajuda. Caso a dor se intensifique, tome um relaxante muscular e, em último caso, ibuprofeno efervescente de 400mg, vendido nas farmácias espanholas. Alivia a dor em 40 minutos.
SOBE E DESCE: Consulte a altimetria no dia anterior. Procure sair cedo para andar no seu ritmo. Beba muita água (3 a 4 litros) e descanse quando estiver ofegante.
REFEIÇÕES: Nem todos os albergues têm café da manhã. Na chegada à cidade, compre algo para o lanche ou um piquenique no caminho no dia seguinte, além de frutas, castanhas e chocolate. À noite, come-se muito menu peregrino: entrada, prato principal, sobremesa e água ou vinho (¤ 10, em média).
SONO: Acredite, pode ser difícil pegar no sono. Nos quartos coletivos dos albergues, há sempre um ‘roncador’. Leve tampões de ouvido e máscara para dormir
PESO: Lidar com cada grama carregado é um exercício diário de negociação. Há pontos de descarte onde você deixa o que não quer e pode pegar algo que necessita. Lembre-se: a mochila deve ter no máximo 10% de seu peso.

DICAS
• Três quilômetros antes da Catedral de Santiago, o Caminho ainda é uma trilha de chão batido em meio a belos bosques. Subitamente, você passará a margear a N-634a, movimentada rodovia que cruza a autoestrada AP-9. Atravesse com cuidado a passarela e as rotatórias. Para não se perder, ande do lado direito e siga conchas e setas amarelas com atenção depois do bairro de San Lázaro.
• Não é permitido entrar na Catedral com mochilas. Vá antes até o seu albergue ou pague ¤ 2 por um guarda-volumes ao lado da porta de entrada. A missa do peregrino ocorre diariamente, ao meio-dia e às 19h30, sem garantia de que haverá o ritual do botafumeiro, incenso gigante e tradicional. Às sextas-feiras à noite, o uso do botafumeiro é certo.
• Como em toda a Espanha, os assaltos no Caminho são bastante raros. Porém, nos albergues podem ocorrer furtos em momentos de desatenção. Mantenha sua doleira próxima até na hora do banho. Grupos se formam com facilidade e é comum um cuidar do outro. mulheres podem andar sozinhas sem problemas.