Amazônia – Feitiço das águas

Minicruzeiro inclui atividades das 6h às 1h

No navio, também há o tradicional baile de gala com a presença do capitão e apresentação de um grupo de danças típicas brasileiras
No navio, também há o tradicional baile de gala com a presença do capitão e apresentação de um grupo de danças típicas brasileiras

A lancha embica em um canto do rio, depois em outro e em um terceiro, até o guia apontar o lugar: “Aqui tá bom”. De um tupperware transparente, Lau (o guia) começa a tirar nacos de carne fresca. Cada um de nós apresenta seu anzol, que ele alimenta sem miséria, filé após filé. A água barrenta, que impede de ver o fundo, aumenta a excitação. É uma mistura de querer e não querer. Quem vai atrair a primeira piranha para o barco?
Definitivamente, não é uma pescaria padrão. Em vez do silêncio absoluto, Lau pede que batamos com a vara na água, em um chamado que ressoa sabe-se lá de que maneira 10 metros abaixo. De repente, uma fisgada, um puxão, o caniço envergando, puxa para lá, deixa correr, puxa para cá e… voilà! Lá estou eu com uma piranha bigoduda balançando ao léu!
Logo descubro que os bagres abundam na Amazônia, e que o fisgado por mim é um deles, gordo, bonito, oportunista. Achou a carne e entendeu que era para si. Lau tira o glutão do anzol e o devolve ao Solimões. Fico pensando se dali a dois segundos começaria o agito frenético das piranhas em volta do bagre levemente ferido. Nada. Marasmo geral.
Intuitivamente, mudo de lado na lancha. Algo me diz que as piranhas predadoras são de direita. Resgato a arte de pescar do meu avô, que levava a família à
Billings nos tempos limpos da represa, e afundo na água a vara abastecida. Espero. Sinto que virá. Sei que virá. E vêm: cinco piranhas seguidas, devidamente dentadas e sem bigodes, uma prateada, duas vermelhas e duas acinzentadas, brilhantes como se revestidas de paetê. Mais gente da lancha vai se desvirginando nessa pesca esportiva. É gente urbana como eu, que experimenta a Amazônia pela primeira vez e em um esquema híbrido, de adrenalina e morosidade na medida.
Somos todos hóspedes do navio-hotel Iberostar, que proporciona, praticamente o ano inteiro, minicruzeiros pelo Solimões e pelo Rio Negro. Nosso pacote durou de sexta a segunda-feira e incluiu, além da pesca de piranhas na região de Manaquiri, saídas para observar a flora e a fauna locais, um avanço de lancha por igarapés (cursos estreitos de água) e igapós (floresta inundada), caminhada por uma mata secundária, visita a uma lojinha flutuante e focagem de jacarés durante a noite. São passeios feitos de lancha, em geral pontuais, e sempre opcionais. Se o hóspede preferir, pode ficar o tempo todo no barco em um esquema all-inclusive, curtindo os três dias nas piscinas do deque, de onde pode apreciar um pôr do sol apoteótico.
“É uma proposta confortável de viver a Amazônia”, resume Lau. Enquanto outros guias do navio meio que se especializaram – um entende de pássaros da região, outro é o cara do mato -, Lau fala inglês, um pouco de macaquês, assobia para o gavião-panema, localiza formigas frenéticas, fascina jacarés com a lanterna, instiga a curiosidade dos estrangeiros e, em especial, desperta nos brasileiros o sentimento de “se orgulhem, porque isso é de vocês”.

EXPECTATIVA X
REALIDADE
O guia explica que, às vezes, os viajantes criam uma expectativa oceânica diante de um ponto turístico e acabam se decepcionando se o quadro não cabe na moldura. No caso, alguns têm na mente uma ideia de Amazônia com anaconda e selva fechada, quando esses minicruzeiros apontam para um cenário mais ‘civilizado’, nem por isso menos surpreendente.
Mas Lau tem noção de que no quadro também cabem personagens mais radicais, como as piranhas e os jacarés. E é atrás dos répteis que nos deslocamos também no sábado à noite em direção à mesma Manaquiri. Lanterna em riste, nosso guia se equilibra à frente da lancha e vai apontando os muitos pares de olhos vermelhos em fila indiana. Alguns jacarés logo se escondem à mera percepção do motor. Outros ficam estatelados, magnetizados pela luz.
É um desses, do tipo jacaretinga, de porte menor, que Lau consegue tirar da água e mostrar para a audiência. Tem uns 2 metros e está seguro pelo pescoço e pelo rabo. Passamos a mão pela barriga lisa, pela cauda pré-histórica. Levemente, Lau puxa o papo do bicho, que abre a boca e revela uma cadeia de dentes afiados.
Logo, o bicho é colocado de volta na água, para não desidratar. Percebo que Lau está tremendo. Não parece envergonhado disso. “A gente precisa ter respeito pelo animal”, diz. “Quando começa a perder o medo, começa a perder os dedos.” É com os dez intactos que esse moço nascido e criado na Amazônia acena para a criançada, que desce das palafitas para saudar os visitantes e bater uma bolinha redonda à margem do Solimões. Simples assim. Mágico assim.