Hakuna Matata: De carro pela África do Sul

Com planejamento e organização, não há problemas

P ara quem ainda não conhecia nada do continente africano, foi um mergulho e tanto. Exatamente 3.672 quilômetros dirigidos, a maior parte deles em estradas de terra e pedra – onde muitas vezes ficava até difícil entender o que era estrada e o que era deserto. Difícil resumir em palavras a jornada de Cidade do Cabo, no sul da África do Sul, até Windhoek, a capital da Namíbia. Um roteiro onde coube de tudo: vinhos e boa gastronomia, cânions espetaculares, banho de rio (gelado e límpido), dunas gigantescas, praia (também gelada) e bichos, muitos bichos.
Os preparativos começaram três meses antes, quando fomos criando o itinerário e esbarrando nas preocupações naturais para um périplo deste porte. É seguro? Sim. Por tudo o que pesquisei antes, tudo o que ouvi de outras pessoas e, principalmente, pelo que senti nos 20 dias de estrada, posso dizer que não houve ameaça alguma durante o trajeto – a despeito do imaginário comum, uma vez que atravessamos trechos extremamente pobres e subdesenvolvidos.
Em momento algum nos sentimos ameaçados, dentro ou fora do carro, mesmo visivelmente com jeitão de turistas e, de quebra, com uma criança de 3 anos e meio a bordo. A dica de segurança básica, na verdade, é: não dirija à noite. Por causa de violência? Criminalidade? Não, não. É porque, à noite, fica mais difícil enxergar os bichos que cruzam a pista – risco iminente de acidentes, portanto.
Uma outra recomendação importante: não faça como fizemos – planeje todas as paradas com pelo menos seis meses de antecedência. Isto porque, sobretudo nas regiões mais turísticas, como Sossusvlei e o Parque Etosha, a oferta de hotéis é menor do que a demanda. Não conseguimos hospedagem nos melhores lugares, nesses casos, e tivemos ainda de enfrentar uma hora de estrada do hotel onde estávamos até as atrações.
Em termos de dirigibilidade, dá para dividir a rota em duas partes: a África do Sul com estradas muito boas; e a Namíbia, onde quase não há asfalto. Em ambos os cenários, prepare-se para rodar por horas e horas (não é força de expressão!) sem cruzar com carro algum.
Foi esta a primeira vez em que contratamos pacote de dados para celular fora do país – mesmo gostando de ficar mais desconectados nas férias. Isto porque o Google Maps foi, com o perdão do trocadilho infame, uma mão na roda em todo o caminho. O esqueminha era simples: quando havia sinal de internet, traçávamos a rota – e o sistema tratava de compensar as falhas de conexão graças ao GPS do celular. Claro que todo cuidado era pouco, então também levamos cópias impressas dos trajetos. Apesar disto, nos perdemos por duas vezes – nada grave, coisa de 40 minutos em cada uma até percebermos e voltarmos à estrada.
Pergunta no posto? Mas se são horas e horas a fio sem cruzar com viva alma, o leitor mais atento deve estar se perguntando sobre os postos de gasolina. Sim, são extremamente raros. Então aqui fica outra dica esperta: ao cruzar com um, encha o tanque, ainda que o mesmo não esteja nem na metade. O mesmo vale para os ‘tanques biológicos’: tenha a bordo comidinhas e água, muita água.
Vale destacar que, por mais rudimentares que sejam as estradas, todas contam com pontos para piquenique demarcados, mais ou menos a cada 10 quilômetros. As estruturas variam, de simples bancos com mesinhas de concreto a quiosques mais caprichados. Um convite ao respiro e às necessárias esticadas nas pernas.
Outra recomendação: nas estradas de terra é importante abaixar a pressão dos pneus. Tanto os postos de gasolina quanto os hotéis têm funcionários prontos para orientá-lo sobre a calibragem adequada para o seu veículo – e ajudá-lo a deixar tinindo. Faz toda a diferença no chacoalho e, importante, reduz o risco de estourar algum pneu (conseguimos completar a viagem sem furar nenhum!).
Sobre as paradas, a escolha não foi aleatória. Pesquisamos sobre as principais atrações turísticas e estabelecemos desvios na rota padrão com o objetivo de visitá-las. Era importante que nenhum trecho tivesse mais do que 500 quilômetros – a ideia era jamais passar a noite na estrada. Sempre começamos a jornada bem cedinho, logo após o café da manhã.
Aí foi só botar o pé na estrada e, como dizem por lá – e também em O Rei Leão – hakuna matata! Ou seja: esqueça os seus problemas.

SAIBA MAIS
Como ir: compre a passagem com a opção de ‘múltiplos destinos’ pela internet ou com ajuda de seu agente. Voe para a Cidade do Cabo e, na volta, embarque direto de Windhoek. Ambos os voos terão conexões. Com a South African (flysaa.com), a passagem com saída e chegada em São Paulo custa a partir de R$ 3.417,15; na Ethiopian (ethiopianairlines.com), o roteiro custa a partir de US$ 876,70 (cerca de R$ 2.776).
Aluguel de carro: para os 14 dias em que ficou com o carro alugado, o repórter pagou R$ 3.630,62 – desse total, cerca de R$ 1.500 foi referente à taxa de devolução por causa da distância entre a cidade da entrega (Windhoek) e do ponto de origem (Cidade do Cabo). Por outro lado, ele não precisou gastar com o seguro do veículo, já que seu cartão de crédito oferecia o benefício gratuitamente. Nesse caso, entretanto, é preciso reservar o carro com antecedência e gerar uma apólice no site do cartão usando o número de reserva. (vale lembrar que alguns cartões também oferecem o seguro-viagem). Caso você não tenha o benefício, contrate na própria locadora: viajar por essas estradas sem seguro, nem pensar.

CIDADE DO CABO
O bê-a-bá do turista

Na Cidade do Cabo, é possível fazer o passeio a Table Mountain pelo bondinho ou com jipe

Principal destino turístico sul-africano, a cidade já é bem manjada dos brasileiros. Ficamos ali seis dias – ainda sem carro alugado – e fizemos tudo o que é obrigatório. Os dois primeiros dias foram dedicados a conhecer vinícolas de cidades vizinhas, como a Neethlingshof Wine Estate, a The House of JC le Roux e a Die Bergkelder: The Home of Fleur Du Cap Wines, em Stellenbosch; a Nederburg Wine Farm, em Paarl; e a Durbanville Hills Winery, em Durbanville.
Também experimentamos um passeio pela Table Mountain a bordo de um jipe equipado para um piquenique com vinhos. Trata-se do Table Mountain Wine Safari (bit.ly/cabosafari), um projeto do guia Henri Bruce. Nosso tour durou uma tarde (500 rands por pessoa ou R$ 117). Se preferir manter-se apenas no clássico, o passeio de bondinho para a Table Mountain (tablemountain.net) custa a partir de 275 rand (R$ 64) para adultos. No dia seguinte, nos emocionamos na Ilha Robben (robben-island.org.za), onde Nelson Mandela (1918-2013) e seus companheiros de luta contra o Apartheid ficaram encarcerados por mais de 20 anos. Conduzem o passeio pelo antigo complexo penitenciário ex-detentos que cumpriram pena ali. O tour – barco até a ilha e ônibus dentro dela – custa 340 rands (R$ 79).
Inevitavelmente, brasileiros ali ficam com vontade de ‘dobrar o Cabo da Boa Esperança’, ainda que seja para relembrar dos velhos livros de História da escola. O jeito mais fácil de chegar é com os ônibus turísticos da empresa City Sightseeing (os famosos hop on/hop off; citysightseeing.co.za). O roteiro inclui uma parada na praia de Boulders, onde está a aclamada colônia de pinguins. Custa 550 rands (R$ 128) por adulto.

LAMBERT’S BAY
Churrasco típico à beira-mar

Lambert’s Bay possui belas praias límpidas e costuma atrair muita gente no verão

Saindo da Cidade do Cabo, apenas 262 quilômetros por estrada asfaltada nos separavam da primeira parada. Lambert’s Bay é uma pequena vila pesqueira, do município de Cederberg, conhecida por praias límpidas – e, portanto, que costuma atrair muita gente no verão. Como estávamos em pleno inverno, a praia só serviu mesmo para uma caminhada na areia. Entretanto, ali tivemos uma das descobertas gastronômicas mais incríveis da viagem.
O restaurante Muisbosskerm (muisbosskerm.co.za) se autoproclama o “primeiro ao ar livre de toda a África”. Obedeça ao proprietário e chegue às 18h para o jantar – o pôr do sol é um aperitivo ao espetáculo alimentar. Não há como não passar pelo menos quatro horas comendo em volta da fogueira-churrasqueira que fica no centro do estabelecimento à beira-mar. São levas e levas de peixes (frescos, pescados no dia), complementados por pratos de carne de porco (inclusive eisbein, já que os proprietários são de ascendência alemã), frango, boi e carneiro. Tudo ao estilo braai, o churrasco típico africano, com lenha em vez de carvão. O menu custa 185 rands (R$ 43) por pessoa – reservas são altamente recomendadas.
Ainda na região de Cederberg, repare nas curiosas paisagens. Formações de arenito esculpidas pelo vento em formas bizarras, montanhas escarpadas e vales verdes tornam o visual incrível.

VIOOLSDRIF
Na fronteira com a Namíbia
Às margens do Orange River, marco geográfico que configura a fronteira entre a África do Sul e a Namíbia, fica o povoado onde se localizava nosso hotel seguinte. Foram 482 quilômetros de estrada – boa, asfaltada –, com algumas paradas pelo caminho. Aos poucos, a paisagem começava a ficar mais árida.
Era inverno, mas se você fizer esta viagem na primavera, considere parar em Springbok, a 360 quilômetros de Lambert’s Bay Ali ocorre um dos mais coloridos e exuberantes espetáculos da natureza. As poucas gotas de chuva que caem entre agosto e setembro transformam a aridez em um tapete de flores. Considerada a mais rica flora bulbífera do mundo, a região conta com 3.500 espécies de plantas – das quais mil só podem ser encontradas ali.
Nosso hotel era um simples lodge de onde víamos o Orange River e, do outro lado, a Namíbia que seria desbravada no restante da viagem. Para comemorar a etapa vencida, nada como encerrar o dia com um braai feito por nós mesmos (o hotel, como é praxe por lá, vendia insumos para o churrasco e tinha espaço para o preparo) – acompanhado por um bom vinho sul-africano, é claro.

SOSSUSVLEI
Dunas ao sabor do vento
Quatrocentros e quarenta e um quilômetros – ou mais um dia inteiro de estrada, no padrão namibiano – nos separavam do próximo hotel, parada de onde conheceríamos as famosas dunas de Sesriem e Sossusvlei.
Organize-se para estar no parque logo de manhãzinha. O espetáculo alaranjado fica mais bonito quando se acompanha a graduação do sol batendo na areia, cada vez mais forte, cada vez mais gritante. São 32 mil quilômetros quadrados de um mar de areia, dunas que chegam a 325 metros de altura – uma paisagem em constante mutação, ao sabor do vento. Milhares de pessoas caminhando pelas dunas dão, de longe, a impressão de um estranho formigueiro feito de areias cintilantes. De perto, vem a vontade de se juntar a elas – mesmo sendo hercúleo o esforço para escalar tais montanhas, sob o sol e em meio ao ar seco.
O interior do parque tem uma rota de 65 quilômetros que podem ser vencidos com carros comuns (como o nosso) e um trecho final, de 4 quilômetros, onde só passam 4×4 – que termina no salar de Sossusvlei propriamente dito.
Animais adaptados a esse inóspito clima, como avestruzes e antílopes, podem ser vistos no trajeto. À esquerda da entrada do parque há um cânion bastante acessível. Vale a caminhada.

 

Por Edison Veiga/Agência Estado | Fotos: Divulgação