Sonho Austral – De navio por um cenário inesquecível

Embarque em um cruzeiro turístico rumo à Antártida

texto: Por Felipe Mortara, especial para O Estado | fotos: divulgação

Quase onze da noite e, atipicamente, eu já dormia. O princípio de um sono bom, quentinho e pesado na cabine 342 foi interrompido pelo aviso sonoro. Naquele momento, o navio Hebridean Sky cruzava o Estreito de Gerlache, na Península Antártica. “A essa hora só pode ser notícia ruim”, pensei. Sem abrir os olhos nem me mexer, esperei a convocação para uma evacuação às pressas. Precedida por um pedido de desculpas do chefe da expedição, Brandon Harvey, a mensagem veio clara pelo alto-falante: “senhoras e senhores, temos orcas ao redor do navio. Muitas delas”. Seria um sonho?
Por breves segundos fiquei dividido entre o calor do edredom, o frio obsceno lá fora e o risco de perder tempo me vestindo com várias camadas e não ver nada. Afinal, bichos vêm e vão. Bocejos. Por fim, virei um boneco recheado de casacos, luvas e preguiça. Segui no corredor, subi a escada, entrei no deque 4. Abri a porta. Logo ali, a primeira e enorme nadadeira dorsal preta rasgando as águas, em meio a blocos de gelo de todos os tamanhos. Êxtase não define.
Este foi apenas um dos incontáveis momentos dignos de lembrança eterna durante as quase três semanas de uma jornada ‘diferentona’, rumo ao Continente Antártico. Mas há cada vez mais viajantes dispostos a investir alto para experimentar sem intermediários um dos destinos mais gelados, inóspitos e únicos da Terra.
De acordo com a Associação Internacional dos Operadores de Turismo Antárticos (Iaato, na sigla em inglês), mais de 44 mil cruzeiristas, a bordo de 53 embarcações, visitaram o continente na temporada passada contra 38 mil na anterior (2015-2016). Um contingente considerável para um pedaço de planeta ocupado por 98% de gelo, e onde até duas décadas atrás pisavam apenas cientistas e velejadores aventureiros.

VIDA A BORDO
Conforto, aulas e clima de expedição no Brasil
Bastam algumas horas de vento forte e mar bravio na travessia do Mar de Drake para entender porque muitos consideram essa atividade não um ‘cruzeiro’, mas uma ‘expedição’. Mas as condições extremas lá de fora não significam perrengue dentro do navio Hebridean Sky. Operado pela Polar Latitudes, empresa norte-americana fundada em 2010, a embarcação de 90 metros de comprimento e capacidade para até 114 passageiros e 75 tripulantes dá conta de ser um hotel cinco-estrelas flutuando por águas congelantes.
Confortáveis, porém sem extravagâncias, todas as cabines têm janela. Mesmo com a água dessalinizada, o chuveiro é bom. A comida se destaca, com farto café da manhã e bufê no almoço – com salada de folhas até quase o fim da viagem. À noite, pratos clássicos e ingredientes de primeira, além de uma respeitosa seleção de vinhos à vontade. Divertido e carismático, o time de garçons filipinos é uma atração à parte.
Aliás, em uma viagem em que o tempo e a sorte podem influenciar diretamente o resultado, o diferencial humano do serviço e do conhecimento se sobressai. Os 18 membros da expedição fazem muito mais do que pilotar botes. Cada um na sua especialidade e paixão, apresentam elaboradas palestras sobre temas como ornitologia, biologia marinha e geologia. Além disso, têm um nível notável de comprometimento, paciência e gentileza.
Talvez essa seja o cerne de uma operação complexa que envolve usar botes, desembarcar em segurança e garantir a harmonia entre dezenas de turistas tão heterogêneos. É um navio pequeno, éramos 81 passageiros a bordo, com idades entre 31 e 89 anos. Havia uma alta concentração de viajantes acima dos 60 anos, principalmente americanos, canadenses, chineses e ingleses. Em comum, o interesse em visitar um dos cantos mais exclusivos da Terra e a disposição de pagar valores a partir de US$ 16.995, sem passagem aérea.

GEÓRGIA DO SUL
Explosão de vida
Quando desembarquei do bote sobre o cascalho preto da praia de Salisbury Plain, foi como se tivesse entrado em outra dimensão. Como se eu não fosse mais um humano com casacão vermelho e câmera fotográfica em punho. Por vezes, o sol até aparecia, mas imperava um frio de temperaturas negativas. Uns 10 pinguins-reis logo se aproximaram, curiosos. Mais atrás, lobos-marinhos-antárticos e elefantes-marinhos despreocupadamente esparramados. Difícil segurar a emoção.
A Geórgia do Sul causa esse efeito nas pessoas.. Considerada a mais pulsante das ilhas subantárticas, reúne a maior concentração de mamíferos e aves do Atlântico Sul. Grandes metrópoles selvagens, Salisbury Plain e Saint Andrews, as duas maiores colônias de pinguins-rei da ilha, concentram cerca de 350 mil indivíduos. “Parece Tóquio”, brincou um dos guias. No mar, é comum avistar baleias Fubarte e Franca. Pelos ares, desfilam petréis gigantes e albatrozes.
“A vida é tão exótica e farta que faz Galápagos parecer uma fazendinha para criança”, exagera o engenheiro Sebastian Coulthard, membro da expedição e especialista em história antártica. Para além dos bichos, a geografia da ilha, com 2,5 vezes o tamanho da cidade de São Paulo, é dramática, repleta de montanhas nevadas de até 3 mil metros de altitude, geleiras, fiordes e baías. E apenas 8 mil visitantes pisaram ali na última temporada.
Outro desembarque ali foi em Gold Harbour, uma enseada compacta, onde quase não descemos em razão da quantidade de elefantes-marinhos ocupando a praia. Pinguins-rei iam e voltavam do mar trazendo alimento para os filhotes, de plumagem marrom. Emoldurando tudo, um dos mais belos glaciares da viagem, que outrora tocava a praia e é uma das provas de que as geleiras estão retraindo.
Na Antártida, nem todas as belezas estão em terra firme. Ao longo de três horas de navegação pelos quase 11 quilômetros de extensão do Drygalski Fiorde, era impossível deixar o convés do navio, mesmo com as fortes rajadas de vento castigando os cruzeiristas. Parecia que estávamos colados aos blocos, que caíam aos poucos. Montanhas pontiagudas e nevadas, como as dos Andes ou do Himalaia, brotando do fundo do mar é algo surreal.

Passado
O capitão James Cook aportou na Geórgia do Sul em 1775 e a reclamou como britânica. Depois vieram os caçadores de focas e baleeiros ao longo do século 20. Principalmente noruegueses, receberam licença para abater e processar centenas de milhares de baleias até 1965. Por décadas, a ilha foi a maior produtora mundial.
Hoje, o foco é a preservação. Desde o fim da cessão do território aos noruegueses nos anos 1960, o Reino Unido mantém na ilha uma estação de pesquisa com cerca de 15 cientistas que se alternam em ciclos de 6 meses a um ano. A base fica em Grytviken, a maior das usinas, e na antiga casa do gerente funciona um museu com a história da ilha e bichos empalhados. É o único momento em que se pode tocar na pele de pinguins e focas e perceber sua textura – nada de encostar nos animais vivos, a regra é clara. Ali há um posto dos correios com cartões-postais, além de uma lojinha de souvenirs.
O homem, a lenda. A Geórgia do Sul ficou famosa também pela história do navegador inglês Ernest Shackleton, que em 1914 pretendia cruzar o continente antártico passando pelo Polo Sul. À frente de 27 homens, o capitão viu seu navio, o Endurance, ficar preso em uma banquisa e ser esmagado pela pressão do gelo. A partir dali se consumou, quiçá, a mais impressionante história de sobrevivência da navegação. Durante dois anos os homens ficaram desaparecidos – mas todos saíram com vida.
Depois de sair da Ilha Elefante em uma travessia de 1,5 mil quilômetros em 16 dias, a bordo de um barco salva-vidas, Shackleton e mais cinco homens chegaram na Geórgia do Sul. Porém, do lado sul da ilha, dividida por uma cordilheira e geleiras com enormes fendas. O Shackleton e mais dois homens, fizeram o percurso em 36 horas – sem mapas.
Caminhamos pelo último trecho dessa aventura, os 6 quilômetros que ligam as baías de Fortuna e Stromness. Foi emocionante alcançar o exato ponto em que os homens avistaram a estação baleeira, cujas ruínas seguem ali. O apito da fábrica foi a certeza de que estavam a salvo. Era 19 de maio de 1916, mas ao ecoar sua buzina pelo vale 101 anos depois da jornada, o Hebridean Sky nos fez sentir um arrepio extra.
Shackleton descansa no pequeno cemitério de Grytviken, onde morreu de enfarte em 1922. É tradição jogar um pouco de uísque em sua lápide. Ah, e na saída, fechar o portão para as focas não entrarem.

Onipresentes, os pinguins-gentoo desfilam pela praia de Saint Andrews Bay

ROTINA ANIMAL
1. Para não confundir: é difícil entender as diferenças sem vê-las de perto. O básico: lobos-marinhos têm orelhas e focas, não. As de Weddell têm manchas pela barriga e cabeça pequena. Já as focas-leopardo são um pouco maiores (chegam a quase 4 metros), mais agressivas e têm o focinho arredondado.
2. Voar, voar: a maior parte das aves vistas na viagem não voa (sim, estamos falando dos pinguins). Mas outros pássaros marcam a jornada. O albatroz-real e o albatroz-errante têm envergadura de até 3,50 metros e são as maiores aves do mundo. Os petréis-gigantes têm olhar ameaçador e comem carniça. Já o biguá-das-shetland exibe uma mancha azul ao redor dos olhos.
3. Rainhas do mar: nenhum outro lugar do planeta concentra tantas espécies diferentes de baleia – os meses de janeiro e fevereiro são os melhores para avistá-las. Mais numerosas, as Jubarte começam a chegar em novembro com filhotes. Com até 27 metros e menos rara do que a azul, a baleia-sei é a segunda maior do mundo. Orcas são raras, mas podem dar as caras em grupos.
4. O dono do harém: elefantes-marinhos até toleram outros machos ao redor, desde que não mexam com seu harém – que pode chegar a 50 fêmeas. Muito maiores, os machos podem ultrapassar os 6 metros de comprimento e 3 toneladas, enquanto as fêmeas não passam dos 3 metros. Passam 80% do tempo no mar e podem mergulhar a profundidades de até 1,6 mil metros.

OUTRAS PARADAS
Desembarques e cenários inesquecíveis: nenhuma operadora consegue prometer com exatidão os pontos de visitação de um Cruzeiro pela Antártida. O motivo é simples: o clima ali muda repentinamente. Com a ajuda de mapas meteorológicos, o chefe da expedição planeja para o dia seguinte os pontos de visitação. A ideia é que cada desembarque coloque o visitante em contato com ambientes e animais diferentes dos dias anteriores. Aqui, os lugares mais marcantes por onde passei.
Baily Head, Ilha da Decepção: formada pela erupção de um vulcão inativo, a ilha tem formato de ferradura e é uma das mais visitadas pelos Cruzeiros. Mas poucos guias haviam desembarcado nesse ponto, que geralmente tem muitas ondas. Vimos de perto a mais pulsante colônia de pinguins-de-barbicha da Península Antártica. Com mais de 150 mil indivíduos, esta cidade tem enormes vias – as chamadas ‘higways de pinguim’ – por onde enormes grupos vão à praia se alimentar de krill e trazer pedrinhas para seus ninhos.
Ilhas Falkland (ou Malvinas): foi o primeiro desembarque depois da saída, dois dias antes, de Puerto Madryn, na Argentina. Port Stanley, a capital, é um pedaço da Inglaterra, com casas em estilo vitoriano, cabines telefônicas vermelhas e mão inglesa. Durante poucos meses, em 1982, o local ganhou o nome de Puerto Argentino, antes de as tropas inglesas retomarem o controle das 776 ilhas na Guerra das Malvinas, que matou 907 pessoas. Diferentemente dos outros desembarques, ali vivem 3 mil habitantes entre uma grande concentração de vida selvagem.

Nenhuma operadora consegue prometer com exatidão os pontos de visitação