‘Motorrad’ é Nietzsche com ‘Tom & Jerry’

Grupo de jovens entram em um território proibido

Foto Divulgação

Passam-se uns sete, oito minutos (por aí) desde a aparição dos créditos de elenco de Motorrad sem que uma só palavra seja dita. Vemos um jovem encourado em jaqueta à la Marlon Brando (em O Selvagem), Hugo (Guilherme Prates) tentando surrupiar um carburador de um ferro-velho. Tudo se passa em um silêncio que precede o esporro do susto: o grisalho dono da loja (Jayme Del Cueto) entra em cena com uma calibre .12 na mão, disparando contra o invasor. Mas mesmo no tiroteio não espocam palavras. Elas vão valer pouco neste filme, cuja abertura já eleva o nível de adrenalina em uma luta do garoto para escapar dos tiros. É uma perseguição entre muitas deste quase cartum de sangue e trevas, que mais parece um desenho animado… parece uma aventura do rato Ligeirinho ou o Papa-Léguas fugindo do Coiote.
Algo diferente do que o cinema brasileiro faz – ou talvez de tudo o que já fez, mesmo na seara da aventura e do terror. O senso de novidade se faz sentir por essa ausência de diálogo, que aponta, já na largada, estamos diante de um espetáculo cinemático: a escrita aqui não pelo verbo e sim pelo movimento puro e sem freios. Se quiser conferir o efeito, tem mais dele na grade do Festival Rio, onde este thriller dirigido por Vicente Amorim foi ovacionado na noite de quinta, em sua estreia nacional – antes daqui, ele passou pelo Festival de Toronto (TIFF), na seleção oficial.
Voltando ao início, onde vemos, sem delonga, um mapeamento do cenário – um Brasil mais interiorano, de pedregulhos e rios, propenso a rallys e expedições – Hugo é detido pelo velho e parece estar prestes a levar um tiro. Mas aí a câmera de Gustavo Hadba (o fotógrafo, em seu melhor trabalho, de cores esmaecidas, turvas) se desgruda do refém, curiosa pela demora de o tira chegar, e fita o velho paralisado, estático. Por trás dele vem uma mulher, uma morena de olhar duro, que mexe com a libido de Hugo (com a nossa também) e, sem dizer muito, salva o rapaz e se gruda nele, como um encosto. A tal presença feminina ganha contornos que vão muito além do desejo graças à atuação de Carla Salle, talvez o grande achado deste Festival do Rio no que tange a descoberta, pelo nosso cinema, de uma atriz vigorosa. E ela esbanja vigor. É uma Elektra em uma Cozinha do Inferno pedregosa e íngreme. O longa começa assim… com quase 15 minutos (ou mais) de fricção entre silêncios e engasgos. E aí entram os demais personagens. Os bons… Ou quase.
Hugo integra um grupo de motoqueiros, cuja liderança cabe a seu irmão mais velho, Ricardo, interpretado com peso heróico épico por Emilio Dantas, um astro nato, com recursos dramáticos capazes de surpreender o espectador mesmo na mais corriqueira ‘falinha’. Os demais personagens são vividos por Juliana Lohmann, Rodrigo Vidigal, Alex Nader e um iluminado Pablo Sanábio, perfeito na pele de Tomás, o membro do time com mais tensão no peito, por ser o que mais tem culpas no cartório da vida. Mas esse cartório não vai valer muito nessa trama, pois seus juízes aqui não têm conexões com crimes do mundo organizado, o mundo da linguagem. No enredo aqui, essa turma de motoqueiros, cuja única meta é se divertir, acaba levando de carona a morena gatinha que salvou Hugo. E esta oferece a eles uma dica de percurso: um atalho. Ao entrarem nele, as moças e rapazes passam a ser perseguidos por misteriosas figuras de preto, com motocas paramentadas para cantar pneu (e matar). E eles carregam facões e armas brancas afins sedentas de coágulos.
Tem algo de ‘O Predador (1987)’, de John McTiernan, na maneira como esses motoqueiros aparecem. Amorim, em uma direção precisa, estabelece uma relação nítida de gato e rato entre eles e os amigos de Hugo. Não se sabe quem eles são, de onde vieram, nem a razão de quererem matar os jovens ali presentes. Os atos são típicos do Jason de ‘Sexta-Feira 13’, mas este tinha uma motivação mórbida (vingar-se daqueles que o deixaram morrer, quando menino). Estes, não. A metáfora do predatismo, que eles encarnam, aparecem em vários filmes do cineasta carioca, quase sempre em figuras de ordem, ou de Poder Político, que tentam silenciar os protagonistas de suas histórias. E, estes, quase sempre, embarcam em jornadas autistas, que parecem estar desconectadas do real. Mais ou menos como Hugo faz aqui, sem buscar entender, por exemplo, a cicatriz em seu pulso e a conexão desta com os motoqueiros. Ele é alheio à verdade em sua volta, pois é um típico exemplar da fauna amoriniana. Nosso diretor em questão é espécie de analista da inocência funcional em nosso cinema.
Desde sua estreia como realizador de longas de ficção, com o subestimado ‘O Caminho das Nuvens’ (2003), Amorim se interessa por protagonistas cuja percepção é embotada por um olhar alienado (por vezes ideológico de mundo). Neste primeiro filme, Wagner Moura não olhava nada a seu redor, empenhado no objetivo de arrumar um emprego capaz de pagar a ele R$ 1 mil: mesmo que para chegar a esse trabalho ele precisasse arrastar a família inteira do Nordeste para o Rio, de bicicleta.
Motorrad é Nietzsche com Tom & Jerry, para nos lembrar, pela cartilha do filme de gênero, que, do Pop viemos e ao Pop voltaremos. Isso se a sobrevivência for viável… A discussão é sofisticada. E chega embalada por uma plástica viva, inquieta e… brasileira.