Entre as montanhas de Jujuy e os vinhedos de Cafayate

Voos diretos de São Paulo deixaram o norte da Argentina mais próximo

D e dentro do avião, prestes a pousar no aeroporto de San Salvador de Jujuy, o que se vê é um mar de morros, cobertos por um verde denso. Só uma prévia do relevo que se espalha na região da capital da província de Jujuy, no norte da Argentina.
Bem menos conhecida que outros ícones do turismo do país, Jujuy ficou mais acessível aos brasileiros com os voos diretos semanais operados pela Aerolíneas Argentinas desde janeiro deste ano. No voo em que embarcamos, poucos brasileiros estavam a bordo – a maioria era de argentinos, que voltava para casa depois das férias no Brasil.
Com raízes andinas fortes, Jujuy é uma cidadezinha de arquitetura colonial, construída na Quebrada de Humahuaca. Acostume-se a esse termo: quebradas são como vales entre cerros – morros e montanhas – uma formação geológica muito comum na região, formada pelo mesmo choque de placas tectônicas que deu origem à Cordilheira dos Andes. Desde 2003, a Quebrada de Humahuaca, que se estende por 170 quilômetros e abriga vários vilarejos (incluindo Purmamarca e Humahuaca), é Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

Pela cidade
Desembarcar no Aeroporto de Jujuy exige paciência. Ele é pequeno, com apenas dois guichês de imigração – foi quase uma hora para sair de lá. Mas, passadas as burocracias, o resto é fácil: o aeroporto fica a 32 quilômetros da cidade e o trajeto pode ser feito de carro alugado, táxi ou traslado oferecido pelos hotéis.
Você não vai precisar de muito tempo para conhecer a cidade. Hospedar-se no centro é vantajoso porque boa parte dos pontos turísticos, bares e restaurantes fica ali – e as ruas planas são um convite a caminhar.
Percorrer essa região é estar sempre em companhia das montanhas, que exibem o verde da vegetação ou cores intensas, laranja, vermelho, tudo dependendo dos minérios presentes. No nosso roteiro, Jujuy foi o ponto de partida para conhecer as coloridas Purmamarca e Humahuaca. Dali, seguimos até a meca dos vinhos de altitude, Cafayate, passando pela animada Salta.
Com 480 mil habitantes, Salta surpreende por sua beleza. Localizada aos pés da Cordilheira dos Andes, a cidade conserva a arquitetura colonial, tem ruas amplas e arborizadas, dias ensolarados e noites frescas, e encanta pelo estilo de vida boêmio. Embora a maioria dos turistas passe apenas uma noite por lá antes de seguir para Cafayate, Salta merece um olhar cuidadoso. Além disso, o caminho entre as cidades é cheio de atrações. Planeje com sabedoria.

Um dia em Jujuy

O suntuoso prédio estilo barroco francês foi erguido no século 20 para ser a casa oficial do governo
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Plaza Belgrano: não é preciso muito tempo livre para conhecer o centro de Jujuy. O local, em si, não tem atrativos muito diferentes de uma praça tradicional. Mas é ao redor dela – e nas ruas próximas – que estão os principais pontos turísticos da cidade. Um deles é a Catedral San Salvador de Jujuy, onde está a Virgen del Rosario.
Casa de Gobierno: na praça fica também a Casa de Gobierno, um suntuoso prédio estilo barroco francês erguido no começo do século 20 para ser a casa oficial do governo da província. Suas portas ficam abertas – é possível conhecer o salão principal, onde está a Bandeira Nacional da Liberdade Civil, criada pelo General Belgrano na época da luta pela independência. Na parte externa do palácio, repare nas quatro estátuas (três mulheres e um homem), feitas pela artista Lola Mora em 1923, que representam a paz, a justiça, a liberdade e o progresso. Na época, as obras causaram polêmica por representarem nus.
Museu Histórico Provincial: apesar de breve, o passeio pela praça e pelo palácio do governo é uma boa maneira de conhecer a história da independência do país e entender sua importância para os povos do norte. A próxima parada é no Museu Histórico Provincial Juan Gallo Lavalle, que fica em uma casa colonial a cerca de duas quadras da praça, e fala sobre a província desde a época dos povos indígenas, passando pela colonização espanhola e, finalmente, pelas lutas de independência, no início do século 19. Juan Gallo Lavalle foi um importante personagem dessa história. Se uniu aos gaúchos e organizou movimentos para libertar a Argentina do domínio espanhol. Na casa onde funciona o museu, Lavalle se escondeu e descansou por um tempo, mas acabou encontrado pelos inimigos e executado. No museu, além da história de Lavalle, há peças que retratam a vida no norte do país na época colonial. Entrada 50 pesos (R$ 8).
Doce de cayote: depois do rápido tour pelo centro histórico, vale uma paradinha no La Petit Confiteria (Rua Lavalle, 415) para provar o doce de cayote (13 pesos ou R$ 2), fruta típica da região. O preparo do doce é bem parecido com as tradicionais compotas de fruta que conhecemos aqui – o sabor lembra doce de mamão. Inclusive, uma das maneiras que os argentinos mais consomem a sobremesa é acompanhada de queijo. No La Petit, o doce é usado no recheio de uma massa folhada assada, semelhante a um croissant.
Tradição e folclore: para terminar a noite com os sabores típicos argentinos, o Peña Apacheta Arte Nativo é uma boa escolha. Peña, aliás, é um tipo de restaurante com apresentações de músicas folclóricas, principalmente gaúchas. Nessas apresentações, os homens, de bombacha, chapéu e lenço no pescoço, batem os pés com força, como se ditassem o ritmo da dança. As mulheres, com seus vestidos rodados, inspirados nas roupas das camponesas, acompanham a coreografia, balançam os lenços e rodopiam ao redor dos companheiros. É difícil não se contagiar pela energia dos dançarinos.
O Apacheta tem um amplo salão, com muitas mesas e um palco onde os artistas se apresentam. O cardápio é variado, mas o carro-chefe é a carne com batatas (purê, ao murro ou fritas), arroz ou saladas. Os pratos variam entre 195 e 385 pesos (R$ 31 a R$ 61) e são fartos. Eles também oferecem uma boa carta de vinhos, quase todos Malbec. Importante: aceita somente pagamento em dinheiro (real, peso e dólar). Rua General Guemes, 759.

Saiba mais
Aéreo: O voo direto São Paulo – Jujuy – São Paulo custa a partir de R$ 939,77 e tem saídas semanais, aos sábados, pela Aerolineas Argentinas. São 3 horas de voo.
Terrestre: saindo do terminal de Jujuy, há ônibus para Purmamarca, Humahuaca e Salta. Mais: balutsrl.com.ar.
Saúde: atenção à altitude. Abuse dos líquidos e pegue leve nos primeiros dias para seu corpo se habituar.

Cafayate e seus vinhos de altitude
Conhecida como Ruta del Vino, a rota 68 liga Salta e Cafayate por uma via sinuosa, que se transforma lindamente pelo caminho. Próximo a Salta, o que se vê é uma paisagem verde, com os cerros cobertos de árvores e intermináveis plantações de tabaco esparramadas aos pés da montanha, que colorem o chão de verde e amarelo. As casinhas coloniais dos povoados que margeiam a estrada transformam o trajeto em uma viagem no tempo. Pouco a pouco, o verde dá lugar ao laranja e mais uma infinidade de tons de vermelho. O clima úmido fica seco. Uma hora depois, a paisagem já é outra.
A transformação começa ao entrar na Quebrada das Conchas, vale formado no Rio das Conchas. O nome tem sua razão: era comum encontrar conchas por ali, resquício de eras em que aquele solo pertencia ao fundo do mar.
As surpresas se sucedem. Como o povoado fantasma de Alemanía, vilarejo que surgiu ao lado da linha do trem e que, durante anos, foi o principal ponto de comércio da região. Quando o trem foi desativado, as pessoas abandonaram o local e o que restou foram as casinhas de adobe.
Um pouco mais adiante, quem surpreende é a natureza, com a grandiosa Garganta do Diabo (o encontro das paredes do cerro que formam uma galeria) e o Anfiteatro, formação rochosa com paredes de mais de 20 metros de altura. O nome se deve à excelente acústica – o espaço até já foi usado para apresentações musicais.

Taças a postos

A tradicional Bodega El Esteco, no coração dos Vales Calchaquies, funciona em um casarão colonial

Cafayate está a 1.750 metros acima do nível do mar e, ao se aproximar da cidade, é possível entender o porquê do nome da rota: incontáveis placas indicam o caminho para as vinícolas. A cena se repete na região central, onde algumas empresas mantêm suas adegas.
Depois de três horas de viagem, fomos direto almoçar no hotel Viñas de Cafayate (cafayatewineresort.com). Embora ali não funcione uma vinícola, há parreirais por todos os lados. Seu restaurante é aberto ao público e, no menu, há comidas tradicionais e uma carta de vinhos tentadora.
Pablo Kishimoto, um dos proprietários do hotel, nos acompanhou durante o almoço. Aficionado por vinhos, ele nos apresentou alguns dos melhores rótulos produzidos na região. Foi nosso ponto de partida para um dia de muito aprendizado – e alguns bons goles.
Embora a Argentina seja conhecida pela qualidade de seus vinhos tintos de Malbec, aqui a Torrontés é o carro-chefe da maioria das vinícolas. A cepa emblemática é oriunda do país e destina-se à produção de um vinho branco bem floral que, apesar de parecer doce no nariz, é seco na boca.
Para conhecer mais sobre essa uva seguimos para a tradicional Bodega El Esteco (elesteco.com), no coração dos Vales Calchaquies, fundada em 1892. Instalada em um casarão colonial, produz ao todo nove rótulos, de diferentes uvas.
Soledad Palma, nosso guia, explicou as diferenças na forma como as uvas são plantadas. E ressaltou a importância da altitude, que dá aos frutos um sabor mais intenso. A plantação da vinícola se espalha em frente ao casarão e avança em direção ao cerro. Nas maiores altitudes estão as uvas que serão utilizadas para os vinhos mais exclusivos.
Depois de cerca de 20 minutos caminhando entre os parreirais, fomos conhecer o processo de produção antes de chegar à melhor parte: a degustação. Provamos três taças, dois tintos e um branco (Torrontés, claro), enquanto Soledad nos orientava a perceber as diferenças de sabores e aromas de cada um. O passeio custa 150 pesos (R$ 23), e é realizado de hora em hora.

História
Para se aprofundar mais no tema, visite o Museu de La Vid y el Vino (museodelavidyelvino.gov.ar), a duas quadras da praça central de Cafayate. Ali, o visitante vai conhecer a história do vinho e descobrir por que a terra, a altitude, o clima e o relevo da região são tão importantes para a produção de rótulos de alta qualidade. Entrada: 60 pesos (R$ 9,50).
Cafayate há muito deixou de ser apenas a casa dos trabalhadores das bodegas. Hoje, o centrinho de casas de adobe e clima bucólico abriga dezenas de hotéis, bares, restaurantes, lojas de souvenirs e até – pasme – uma fábrica de cervejas artesanais em pleno reduto vitivinícola.
Ao redor da praça central, e nas ruas próximas, o clima é agitado. O comércio funciona até as 21 horas, e o vai e vem de turistas é grande. Para quem acha que o vinho se restringe as taças, as gelaterias que ficam ao redor da praça central provam que não é bem assim. Dentre os inúmeros sabores no cardápio (incluindo doce de leite, claro), dois se destacavam: gelato de vinhos Malbec e Torrontés. Peça sua casquinha e aproveite a sombra das árvores para degustar, sem pressa.